A Globalização é um período de crise mundial da ética. Um dos principais vetores desta crise é a imposição de um pensamento único, uma ideologia que justifica e legitima o processo de expansão da estrutura capitalista no âmbito mundial e dos anti-valores que lhe servem de base cultural e espiritual. O vetor ideológico da globalização se manifesta no fato dela ser apresentada, nos meios intelectuais, políticos e de comunicação de massa, como uma panaceia para os atuais desafios da vida social. No mundo contemporâneo, o imperativo da adequação à “nova ordem mundial” substitui o humanismo ético e a busca pelo sagrado – enquanto fonte de orientação de sentidos para a vida humana – pela idolatria de novos deuses que proliferavam tais como o Mercado e os neoliberais mecanismos de geração de eficiência e produtividade; a Técnica e a aceleração ímpar do avanço tecnológico que permite, pela primeira vez na história, a unicidade mundial do tempo e, por sua vez, a simultaneidade das finanças globais; e o Dinheiro, universal meio de troca, agora indispensável para a concretização dos projetos de vida, argamassa onipresente nas relações humanas.

De minha parte, causou espécie o episódio no qual alguns jogadores da seleção brasileira, na companhia do hoje cartola Ronaldo Nazário, confraternizavam, após a derrota para Camarões (2/12/2022), num rega-bofe salpicado de ouro. É isto mesmo: carne com ouro em pó, servida à farta, com alguns dos presentes salpicando, eles mesmos, a carne com o nobre mineral. Haverá quem diga que não é bem assim e que o “ouro comestível” não é tão caro. Mais caro ou menos caro, pouco importa. O que importam são o apreço ou o desapreço por outros valores que não os da carne ou do metal ingeridos. No Brasil, há cerca de 33 milhões de pessoas que (sobre)vivem em estado de insegurança alimentar. No mundo, são 830 milhões de pessoas, e destes, 193 milhões em situação de “severa” insegurança alimentar. Em bom português: passam fome.

Tenho a impressão de que, quando Terêncio (185 a.C.-159 a.C.) disse que “nada do que é humano me é estranho”, ele afirmava a importância de compreender a humanidade de forma abrangente, inclusive nos seus horrores – com a lembrança, claro, do que disse Isaiah Berlin (1909-1997), para quem “compreender não significa aceitar”. Estamos a falar de cidadãos que diminuem a cidadania, ridicularizam-na e fazem chacota com ela. É indecoroso o bife de ouro de Doha. As cenas dos brasileiros consumindo a “carne dourada” exemplificam o pior em matéria de ostentação demasiada.

Ainda mais, queremos alimentos sadios e não lixo alimentar. Precisamos de uma nova agricultura, agroecológica, regionalizada, sem veneno, respeitadora do ambiente no qual se insere. Por isso falamos em segurança e soberania alimentar e nutricional. Não precisamos de bifes de ouro, precisamos de alimentação saudável. A fome tem suas causas para existir. As primeiras são as estruturais, isto é, a concentração da terra e do crédito. Um país escravocrata roubou as terras indígenas e, pela Lei de Terras de 1850, impediu que os negros tivessem acesso a elas, já que só poderia ter terras no Brasil quem as comprasse ou herdasse. Os negros não tinham de quem herdar e nem dinheiro para comprá-las. Começa aí o racismo fundiário brasileiro. Porém, indígenas e negros vão se aquilombar ou adentrar o interior brasileiro para sobreviver. E hoje essas são suas lutas para garantir seus territórios. O primeiro passo para a superação da fome é a garantia dos territórios, a reforma do crédito e a reforma agrária.

Segundo, o agronegócio produz commodities para a Bolsa de Mercadoria, mas quem põe 70% dos alimentos na mesa brasileira é a agricultura familiar, que tem pouca terra e pouco crédito. Então, o governo que vai chegar, pode melhorar o crédito, garantir o território das comunidades tradicionais, ampliar a área plantada de alimentos, ampliar a reforma agrária. Assim atacará as questões estruturais da fome no Brasil. Por fim, assumir as medidas emergenciais com vontade política: um Bolsa Família que garanta a aquisição de alimentos, a merenda escolar, os restaurantes populares e tudo que for necessário para satisfazer as necessidades básicas das pessoas. Em último caso, como diz o Evangelho: “dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16). Logo, não carecemos de bifes de ouro para resolver a fome, mas precisamos de decisões políticas sérias e consequentes para atacar esse mal pela raiz.

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

* Professor nas Faculdades Promove de Sete Lagoas (2005-2009), Fortium (2013) e JK (2013-2020). Jornalista, formado pelo UniCEUB. Poeta. Doutor e mestre em Estudos Literários pela UFMG.

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