Em que se sustenta a crença em que o brasileiro não lê? A pouca intimidade do nosso povo com as letras é uma verdade absoluta? Costumam ganhar ênfase conclusões acerca do lugar da leitura na vida nacional, relacionando-o ao par opositivo prazer x necessidade. É difundida, de modo generalizado, a ideia de que “o brasileiro não lê, seja ele de qualquer classe social”. No percurso do fio discursivo de que a falta de leitura seria um traço da identidade do brasileiro, apregoa-se, além de fatores socioeconômicos, que lemos pouco por má formação cultural.
A expressão adverbial “por má formação cultural” é que se encarrega de atrelar a leitura à cultura letrada, como já se fazia desde o Brasil colônia, sendo essa posição ideológica originada historicamente da visão do colonizador, do olhar do outro, europeu, “civilizado”, ao se deparar com a população indígena. Desse modo, pode-se afirmar, a partir de marcas deixadas na formação da identidade do brasileiro, que a cultura em nossa região geográfica foi atrelada à cultura letrada e que o discurso de que “o brasileiro é mal formado culturalmente” funciona como uma memória nas representações que se tem feito da leitura pela sociedade brasileira.

Por sua vez, a instituição escolar, repetindo práticas que se assemelham àquelas dos primeiros educadores do país — os jesuítas —, também tem atrelado leitura à cultura, como atividade para letrados. Os sujeitos da escolarização reproduzem sentidos voltados para a inclusão pela letra que fazem parte de um já-lá-dito sobre o brasileiro construído historicamente. Assim, alfabetizar-se significa “preencher uma falta”, “mudar o caráter”, “acabar com um mal”. O brasileiro nasce com essa falta, nasce analfabeto, devendo-se incluir dentre os alfabetizados, dentre os letrados.
A respeito do tema em questão, quem não chove no molhado é o professor, poeta e doutor em Estudos da Linguagem, Luiz Eduardo Rodrigues de Almeida Souza, com a tese A literatura periférica do Coletivoz Sarau de Periferia e do Slam Clube da Luta de Belo Horizonte: uma análise da formação de leitores e escritores por meio de performances poéticas como letramentos literários de reexistência (CEFET-MG, 2022). Como frisa o resumo da pesquisa orientada pelo professor Vicente Aguimar Parreiras: “Os resultados identificam que o Movimento de Literatura Periférica dos Saraus e Slams pode se configurar como uma Agência de Multiletramentos Literários e seus poetas-performers como Agentes de Letramentos de Reexistência, formando muitos jovens e adultos leitores e escritores em espaços não-escolares e, também, transitando por espaços institucionais dos sistemas de educação e de cultura”.

Os discursos sobre a falta de leitura do brasileiro ressoam no meio social e pedagógico e envolvem um complexo jogo de forças. Desmentindo a ordem do discurso hegemônico a respeito, o estudo de Luiz Eduardo Rodrigues de Almeida Souza “apresenta como temática o papel estético-educacional da Literatura Marginal e Periférica Contemporânea do Coletivoz Sarau de Periferia (2008) e do Slam Clube da Luta (2014) na formação de novos leitores e escritores por meio de Performances Poéticas como práticas e eventos de Letramentos Literários de Reexistência em espaços não-institucionalizados (bares, ruas, praças, etc.) da regional do Barreiro e do centro de Belo Horizonte, bem como em locais institucionais de escolas públicas e centros culturais (equipamentos dos sistemas da educação e da cultura) a partir da realização de oficinas artístico-literárias (eventos pontuais ou projetos culturais)”. A Argentina também esteve presente no “click epistemológico” do pesquisador etnografista, que foi acolhido pela professora Lucia Tennina e pelos raperos e produtores das batalhas de MC’s por ruas e praças das periferias da região metropolitana de Buenos Aires.
Com tese esmerada, podemos reconhecer uma outra realidade a caminho: cresce a expectativa de que projetos inovadores se apresentem. Uma “Agência de Multiletramentos Literários” acontece em nosso país, mostrando que a expressão “hábito de leitura” implica um conceito de leitura restrito. A acepção da leitura como “hábito” está vinculada historicamente ao conceito de cultura, por sua vez, estratificada no imaginário social do país como decorrente de produção escrita, reconhecida como trabalho de letrados e atividade para privilegiados. Luiz Eduardo Rodrigues de Almeida Souza demonstra em sua tese o quanto é preciso a instauração de outros sentidos, na forma de outras propostas que levem a leitura como bem sócio-cultural. Em jogo, encontra-se um importante estudo sobre os discursos e as disputas por sentidos que envolvem a constituição do nome “leitura” para o brasileiro. Quem está provocando essa revolução cultural é o protagonismo periférico realizado pelos “Agentes de Letramentos de Reexistência”.

Luiz Eduardo Rodrigues
Abrimos a gira ou o giro decolonial com Luiz Eduardo Rodrigues de Almeida Souza. A ciência e seu poder transformador possibilitam este alargamento de possibilidades para que a palavra seja liberta. Na contramão do “modo dominante” e contemplando a diversidade, o Cientista/Flâneur/Exu conta detalhes impressionantes de sua experiência com a sublime transgressão. Imperdíveis são os diálogos entre as entrevistas com escritores (Dione Machado, Karine Bassi, João Paiva e Pieta Poeta) e leitores (Graciele, Patrícia, Stela e Laetitia). O conjunto de vozes autorais presentes na tese é admirável. Em seu poema Surtos (2018), a videomaker e rapper Isabela Alves toma a palavra com ousadia: “Parei pra refletir e tentar buscar um norte/Eles disseram pra seguir/mais não falaram para onde/Eles disseram os meus passos/Ditaram os pronomes/Disseram não explicaram sistema era seu nome/Fez de você um fantoche deboche horário nobre/Criaram a separação a do rico a do pobre/Eles pagam um bom ensino/e nós aprende com a vida”.
Marcos Fabrício Lopes da Silva*
* Doutor e Mestre em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (FALE-UFMG). Poeta, professor autônomo e pesquisador independente. Jornalista, formado pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB).