
O pensamento dualista desenhou a antiga imagem dos “dois Brasis”, título da obra do francês Jacques Lambert (1901-1991) publicada em 1957. Já se fez a crítica da polaridade modernização/atraso. Mestiçagem, identidade e liberdade (2023), o novo livro do antropólogo Antonio Risério, publicado pela TopBooks, esclarece a finalidade das políticas de raça. Não se trata, como alegam seus arautos, de oferecer oportunidades a pessoas em desvantagem, via acesso às universidades ou a empregos públicos. Busca-se, de fato, dissolver a consciência da mestiçagem que sustenta nossa identidade nacional, substituindo-a pela imagem de um país bicolor, dividido entre “brancos” e “negros”.
“A fusão de raças tem se processado desde os primórdios da vida humana sobre a Terra” — nas palavras de Juan Comas (1900-1979), numa coleção da Unesco sobre raça e ciência. Risério cita a passagem para diferenciar os cruzamentos genéticos (miscigenação) da mestiçagem. A segunda é um fenômeno cultural — social e político. Mestiçagem significa reconhecimento positivo da miscigenação. O “racismo científico” do século XIX denunciou a miscigenação como degeneração de raças. O movimento identitário-racial, que nasceu nos EUA, opera sob o mesmo paradigma. A noção de raça remete às ideias de pureza, separação e gueto; mestiçagem é a celebração da impureza, da mistura e da troca. O Brasil declarou-se 100% impuro, desde Gilberto Freyre (1900-1987) até a Tropicália. Hoje, sua elite intelectual engata marcha a ré, coalescendo ao redor de um projeto de imitação dos EUA.


Infelizmente, nossa história social, política e cultural é estruturada na violência da colonização branca europeia que fez do sequestro e escravização dos povos africanos a base da economia brasileira. Uma colonização que nega a nossa africanidade cultural e social. Não há democracia num país onde 56% da população está sob constante ameaça, num país onde crianças, jovens e adultos correm o risco de serem presos ou mortos porque são pretos. Sendo uma das maiores causas do racismo, o privilégio branco é fator silencioso que condiciona os negros às piores condições de vida e os brancos acessos às vantagens sociais. Por mais dura que seja essa realidade, deve ser enfrentada por todos para viabilizar a construção de um mundo mais justo e igualitário.
“A questão racial revela, de forma particularmente evidente, nuançada e estridente, como funciona a fábrica da sociedade, compreendendo identidade e alteridade, diversidade e desigualdade, cooperação e hierarquização, dominação e alienação” – ressalta Octavio Ianni (1926-2004), em Dialética das relações raciais (2004). Temos assistido à consolidação de matrizes analíticas e narrativas que reconhecem raça e gênero como eixos estruturantes das desigualdades no mundo. Nas duas últimas décadas no Brasil, vimos uma transformação da cidadania. Os códigos culturais na sociedade passam a ser vistos não mais como um culto a homogeneidade, mas são redefinidos pela noção da diferença. Essa mudança na cidadania acompanha o desenvolvimento democrático ao qual experimentou o Brasil no seu ordenamento político e jurídico. Se esse processo significou a alteração da cidadania e da ideia de popular, cabe detalhar o fenômeno e analisar o conjunto de transformações sociais e culturais e seus códigos para a cultura dita nacional.

Octavio Ianni (1926-2004)
Quais expressões e manifestações na política de representação foram surgidas nesses pequenos passos emancipatórios na sociedade brasileira nos últimos vinte anos? O Brasil é reconhecidamente um laboratório de experimentações culturais devido a sua multietnicidade e multiculturalidade. As artes, a dança, expressões artísticas, todas admitem as transformações. E desse modo, o que a música brasileira pode mostrar nesse conjunto controverso de mudanças sociais? Elza Soares (1930-2022) disse recentemente no seu último clipe: “O meu país é o meu lugar de fala, eu não quero ficar muda” (O que se cala, 2018). A expressividade da cantora, vista em toda sua trajetória musical e de vida, clamou pela necessidade afirmativa do direito a existência pela comunicação. O racismo invisibiliza as potencialidades africanas no Brasil na mesma medida que desumaniza e desautoriza a vida plena das pessoas. Em Mama África (1995), o músico Chico César conta a história de uma comerciária que enfrenta dupla jornada de trabalho (tarefas domésticas e trabalho remunerado):
“Mama África/A minha mãe/É mãe solteira/E tem de fazer mamadeira/Todo o dia/Além de trabalhar/Como empacotadeira/Nas Casas Bahia/Mama África tem/Tanto que fazer/Além de cuidar neném/Além de fazer denguim/Filhinho tem que entender/Mama África vai e vem/Mas não se afasta de você/Quando mama sai de casa/Seus filhos se olodunzam/Rola o maior jazz/Mama tem calos nos pés/Mama precisa de paz/Mama não quer brincar mais/Filhinho dá um tempo/É tanto contratempo/No ritmo de vida de Mama/Deve ser legal/Ser Negão no Senegal”.

As desigualdades sociais e econômicas que dividem as sociedades parecem mais robustas e mostram que não fomos capazes de refletir sobre o quanto é passageira nossa trajetória no planeta e que dele nada levamos quando nos encontramos com a finitude da vida. O racismo e a depreciação de pessoas pretas e pardas são comuns no Brasil desde o século 16, quando os primeiros negros foram sequestrados em países africanos e submetidos ao regime escravista no Brasil e a todos os tipos de torturas. Avanços na legislação tentaram eliminar ou cicatrizar a profunda chaga social criada pelos colonizadores e pela escravidão. Os resultados foram pífios. Ainda falta letramento à sociedade para que haja igualdade étnico-racial, além de equidade de gênero neste país.
Marcos Fabrício Lopes da Silva*
* Doutor e Mestre em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (FALE-UFMG). Poeta, professor autônomo e pesquisador independente. Jornalista, formado pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB).