Em Raízes do Brasil (1936), o historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) já lançava luz sobre as intrincadas relações entre a herança escravista brasileira, a indeterminação política e cultural brasileira que funde o político ao privado, e o modus operandi dos “donos do poder” que se caracteriza pelo traço comportamental da cordialidade. Um dos efeitos mais visíveis dessa tríade de fenômenos é a perpetuação de uma cultura insolidária em que os indivíduos raramente se inserem em programas coletivos, sendo levados amiúde a privilegiar projetos pessoais no interior da lógica clientelista e cordial.

O Brasil é um país em que tudo pode acontecer, até mesmo um político medíocre e nefasto como Jair Bolsonaro chegar a presidente da República. A decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de torná-lo inelegível é um fato histórico (30/06/2023), embora o personagem não merecesse tão alta distinção. Deveria ser apenas um pé de página nessa história, ou ter sido barrado ao longo dos 30 anos de vida parlamentar em diversas ocasiões, como quando ameaçou uma colega de estupro, quando declarou-se disposto a fuzilar um presidente da República, quando homenageou um torturador notório ao votar pelo golpe contra a presidenta Dilma, e assim por diante.
Mesmo assim, a inelegibilidade do ex-presidente Bolsonaro é um fato marcante da nossa história política recente, que conta com várias crises, impeachments, tentativas de golpe, ou golpes propriamente ditos. Depois de 8 de janeiro de 2023, ficou difícil alguém duvidar de que o que estava em curso era um golpe de Estado tradicional, com as Forças Armadas aderindo ao presidente rebelado, uma varredura no Legislativo e no Judiciário, que passariam a ser subordinados ao Executivo, como acontece nas ditaduras no mundo.
Uma condenação como essa sofrida por Jair Bolsonaro é fundamental para que o Estado Democrático seja cada vez menos relativizado entre nós. Convém sempre lembrar do notável alerta proferido pelo sambista maior, Bezerra da Silva (1927-2005): “Se vocês estão a fim de prender o ladrão. Podem voltar pelo mesmo caminho, o ladrão está escondido lá embaixo, atrás da gravata e do colarinho” (Vítimas da sociedade, 1985). Na mesma direção argumentativa, o sociólogo francês Loïc Wacquant afirma, em Os condenados da cidade: estudos sobre marginalidade avançada (2001), que as transformações desiguais dos setores mais avançados das sociedades ocidentais resultam no que ele chama de “dualização da metrópole”, que gera uma cisão entre ricos e pobres visualizadas pelos extremos de luxo e carência, lembrando bem outra estrofe da canção de Bezerra da Silva: “No morro ninguém tem mansão/Nem casa de campo para veranear/Nem iate pra passeios marítimos/E nem avião particular/Somos vítimas de uma sociedade/Famigerada e cheia de malicias/No morro ninguém tem milhões de dólares/Depositados nos bancos da Suíça”.

Observando atentamente os efeitos nocivos da era dos extremos, o professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e ensaísta João César de Castro Rocha recomenda novas perspectivas: “Talvez a ‘dialética da malandragem’, tal como formulada por Antonio Candido (1918-2017) num texto fundamental (1978), esteja sendo substituída por uma ‘dialética da marginalidade’. A ‘dialética da marginalidade’ pretende superar a desigualdade social mediante o confronto, em lugar da conciliação; através da exposição da violência, em lugar de seu ocultamento. Portanto, se a ‘dialética da malandragem’ supõe uma forma descontraída, jovial de lidar com a injustiça social e o cotidiano, a ‘dialética da marginalidade’ impõe-se mediante a exploração e mesmo a exposição metódica da violência, a fim de explicitar o dilema da sociedade brasileira” (Letras, Universidade Federal de Santa Maria – UFSM, jun. 2006).
A definição de pobre que repito pra mim mesmo é qualquer pessoa que, se parar de trabalhar, morre de fome. Pobre da maioria da população que precisa trocar sua força produtiva, tempo, energia, vitalidade, juventude, corpo, inteligência, saúde, por dinheiro. Certa parcela da sociedade, mais privilegiada, não precisa usar todo o dinheiro que ganha com necessidades básicas para manter os órgãos vitais funcionando, como água e comida. É difícil, contudo, confiar nos ricos. Trata-se de um pessoal cheio de estranhezas, que às vezes até gosta de se fantasiar de pobre. Como prefeito de São Paulo à época, o empresário João Doria, um dia após ser empossado, vestiu-se de gari e só fez varrição simbólica para tirar fotos e lançar o programa Cidade Linda (Estadão, 02/01/2017). Jogada de marketing, bem ao estilo “Candidato Caô Caô” (expressão que intitula um dos maiores sucessos musicais de Bezerra da Silva)!

Ora, como diria o insuspeito Max Weber (1864-1920), os ricos e felizes, em todas as épocas e em todos os lugares, não querem apenas ser ricos e felizes. Querem saber que têm “direito” à riqueza e felicidade. Isso significa que o privilégio – mesmo o flagrantemente injusto, como o que se transmite por herança – necessita ser “legitimado”, ou seja, aceito mesmo por aqueles que foram excluídos de todos os privilégios. Sem querer evangelizar ninguém, mas a malsucedida expedição dos bilionários ao Titanic me fez lembrar das palavras de Jesus em Mateus 19:23: “É mais fácil passar um camelo pelo buraco de uma agulha, do que um rico entrar no Reino dos Céus”. Segundo a revista Forbes, o mundo tem 2.640 bilionários e muitos deles estão dispostos a arriscar não a fortuna, mas a vida em aventuras como a do Titanic, pagando US$ 250 mil pela experiência exclusiva de um passeio a quase quatro mil metros de profundidade. Deve ser ruim pra cabeça a possibilidade de poder fazer qualquer coisa, de comprar qualquer coisa, e não se maravilhar com um pôr de sol. Ou precisar fazer coisas muito extremas, ir a lugares inimagináveis, para valorizar o que tem em casa.
Marcos Fabrício Lopes da Silva*
* Doutor e Mestre em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (FALE-UFMG). Poeta, professor autônomo e pesquisador independente. Jornalista, formado pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB).