A história do Brasil, passada e recente, é a história do assassinato da história. A ideia não é minha, mas pode ser encontrada, repetida à exaustão, nos ensaios e livros dos nossos melhores intelectuais. Carlos de Laet (1847-1927), que escreveu durante meio século — e sofreu censura e perseguições por defender a monarquia —, mostra, numa de suas crônicas, a materialização da sanha adesista que tomou grande parte da classe política após o golpe de 1889: até das talhas de barro em que se armazenava água mandou-se arrancar os símbolos imperiais. E Laet descreve, então, o funcionário que, utilizando um canivete, tenta raspar o barro, mas sempre, ao final, criando um rombo na talha. “A coroa sai, mas a talha fica furada”, diz Laet para concluir: “Desconfio que nunca mais se consertou a talha republicana”. A ironia de Laet tem qualidade profética, desgraçadamente. Com a república, criamos essa compulsão pelo assassinato, pois acreditamos que o progresso, o Brasil do futuro, só nascerá se matarmos o passado.

Somos um campo de guerra. Qualquer inutilidade ideológica é mais importante do que tudo que já perdemos e continuaremos a perder. Para onde quer que você desvie o olhar, verá apenas uma coisa: ruínas, ignorância, abandono, devastação. Anton Tchékhov (1860-1904) escreveu certa vez que os grandes escritores e os grandes artistas devem se ocupar da política apenas na medida em que é preciso se defender dela. Numa época como a nossa, em que vemos um nítido embate entre direita e esquerda em nosso país, esse pensamento ganha uma importância maior. Mas, em 1898, quando Tchékhov compartilhou-o com o amigo e editor Alexei Suvorin (1834-1912), ele já demonstrava tal preocupação. Ele sabia, certamente, que as grandes mudanças que podem acontecer numa sociedade ocorrem, antes de tudo, na cultura. Para que a vida política mude de alguma maneira, é preciso que haja primeiro uma mudança na cultura.

As mudanças não surgem por geração espontânea, mas se devem a um trabalho no substrato da organização da sociedade, na cultura em geral. Tchékhov tinha consciência disso. Estava também consciente de que o trabalho de um grande escritor não deve se prender às questões momentâneas da política: ele precisa encarar sua arte e sua vida sob outra perspectiva, que vai muito além de sua própria vida e de seu próprio tempo. A última preocupação dos grandes escritores — aqueles que deixaram uma obra que transcendeu o período de tempo no qual viveram — era a política mesquinha de todo dia. Preocupavam-se principalmente em deixar uma obra que permanecesse para as futuras gerações. Essa deve ser também a preocupação principal daqueles que desejam de fato tornar nosso país um lugar em que as ideias possam ser debatidas com maturidade, independência e sensatez — e em que a verdade possa ser buscada sem a influência perniciosa de ideologias.

O golpe militar de 1º de abril de 1964 completou 60 anos, mas faz parte de um passado que insiste em se fazer presente no Brasil ainda hoje, haja vista a ascensão da extrema direita ao poder em 2018 e a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023. Nossa inaceitável omissão em não responsabilizar os criminosos da ditadura, ou resgatar o legado de quem foi vilipendiado e, em não acertarmos as contas com um movimento decisivo de nossa constituição como país, nos custará o preço da ignorância voluntária. Eu não separaria o descaso do esquecimento. Por isso, lembremos do poeta Cacaso (1944-1987), autor de Aquarela: “O corpo no cavalete/é um pássaro que agoniza/exausto do próprio grito./As vísceras vasculhadas/principiam a contagem/regressiva./No assoalho o sangue/se decompõe em matizes/que a brisa beija e balança:/o verde – de nossas matas/o amarelo – de nosso ouro/o azul – de nosso céu/o branco o negro o negro” (Grupo Escolar, 1974).

Não me parece ousado dizer que preservamos muito pouco e não aprendamos quase nada com a passagem dos anos. Fomos mesmo capazes de reinstaurar um pacto democrático em 1988 sem mandarmos embora das instituições federais os mesmos homens que fizeram e deram manutenção ao golpe. Desejosos de esquecer os fardos que ficavam pelos cantos, foi-se em frente no embalo das ideologias e de promessas irresponsáveis. Mas esse tipo de coisa não jaz quieto no subsolo de uma sociedade. As memórias mal digeridas vivificam os piores sentimentos. Faltam à política brasileira impulsos a favor, gestos generosos, mãos estendidas, aproximações. É preciso mostrar aos ressentidos, aos grandes e pequenos ditadores escondidos nos desvãos de uma democracia imatura que, a despeito das acirradas disputas partidárias, há um sólido sentimento de repulsa à arbitrariedade e à tirania. Esta convergência ou consenso precisa aflorar, materializar-se como vontade coletiva.

Pensemos, como sugere Daniel Innerarity, autor do livro Política para perplexos: o fim das certezas (2021), “o objetivo da política é garantir que a vontade popular seja a última palavra, mas não a única; que o julgamento dos especialistas seja levado em consideração, mas que não nos submetamos a ele; que as nações reconheçam sua pluralidade interior e se abram a redefinir e negociar as condições de pertença”. Nesse sentido, o Brasil precisa considerar o crescente aumento do número de pessoas que participam das transformações contemporâneas da política e da democracia. Não à toa, a maturidade nacional depende cada vez mais das complexidades geradas por quatro lógicas (eficácia, legitimidade, solidariedade e prevenção) e quatro tempos (financeiro, constitucional, comunicativo e ambiental). Nosso desenvolvimento deve se orientar pela legitimidade que deriva do conhecimento mobilizado para a tomada de decisões adequadas.

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

* Jornalista pelo UniCeub. Doutor e Mestre em Literatura Brasileira na UFMG, onde integra o Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade, da Faculdade de Letras. Poeta e autor do livro Machado de Assis, crítico da imprensa (Outubro Edições, 2023). É professor autônomo e pesquisador independente.

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